Endemia oculta de hanseníase foi diagnosticada em Jardinópolis (SP) — Foto: Reprodução/EPTV
A aplicação de um questionário na rede municipal de saúde de Jardinópolis (SP) ajudou autoridades em saúde a descobrir uma endemia oculta de hanseníase na cidade. De 479 moradores avaliados clinicamente, 64 foram diagnosticados com a doença e passaram a ser tratados.
Responsável pela elaboração do formulário, o médico dermatologista e pesquisador da faculdade de medicina de Ribeirão Preto da USP, Fred Bernardes Filho, acredita que a incorporação do questionário pelo Sistema Único de Saúde (SUS) poderia ajudar mais pessoas a terem o diagnóstico correto.
Segundo o especialista, muitos pacientes são tratados equivocadamente para outras doenças, quando na verdade têm hanseníase.
“Eu tenho diversos pacientes que eu diagnostiquei como hanseníase e eles faziam tratamento durante muitos anos de fibromialgia, de túnel do carpo, de artrites, de artrose, e eles não tinham essas doenças. Eles foram tratados de forma equivocada por muitos anos, sendo que eles tinham hanseníase. Começaram a fazer o tratamento da hanseníase e com um ou dois meses deixaram de ter dores que eles tinham há três, cinco, dez anos.”
Hanseníase afeta nervos superficiais da pede — Foto: Carla Cleto/Sesau
O que é hanseníase
Bernardes Filho explica que a hanseníase é uma doença infecciosa causada por uma bactéria e que afeta exclusivamente seres humanos. A forma de transmissão ocorre pelas vias aéreas, por gotículas. O diagnóstico ocorre por exames clínicos, sorologia específica e até raspagem dependendo do nível.
A doença é primeiramente neurológica, afeta os nervos mais superficiais da pele, e pode provocar formigamentos, dormência, câimbras, sensação de agulhada e pontadas. Segundo o médico, só depois anos de evolução, os pacientes começam a apresentar lesões na pele, como manchas e caroços.
“Hanseníase não fica no cérebro, na coluna. Geralmente, vai ficar nos nervos mais superficiais da nossa pele. E essa bactéria vai provocar uma inflamação crônica que vai levar aos sintomas em diversas regiões do nosso corpo e que, normalmente, pioram no período noturno. A bactéria tem maior atividade no frio, então como a gente tem uma diferença de temperatura do dia para a noite, é mais comum a piora dos sintomas no período noturno”, afirma.
Outra característica importante é que a bactéria da hanseníase tem o metabolismo lento, o que resulta na evolução lenta dos sintomas.
Segundo o médico, mesmo infectada, nem toda pessoa a transmite, por ter uma carga bacteriana pequena.
“Os pacientes que têm a doença iniciam o tratamento, que vai ser durante um ano. Em três semanas de tratamento, ele perde a capacidade de transmissão. Então não tem a necessidade de isolar ninguém para tratar, a rotina do paciente com hanseníase é a mesma, não tem que mudar nada por causa da doença”, diz.
Estudo do médico Fred Bernardes Filho capacitou profissionais de saúde em Jardinópolis — Foto: Divulgação/ Arquivo Pessoal
Aplicação de questionário
A ideia da aplicação do questionário em Jardinópolis surgiu em 2015, quando Bernardes Filho atuava no pronto-atendimento municipal.
Um levantamento feito pelo médico apontou que, de 2005 a 2014, 11 casos tinham sido diagnosticados no município. Mas, em um semestre de atuação dele na cidade, em 2015, foram descobertos 12 novos infectados.
“Começou em um plantão um caso; no outro plantão dois, três casos, e isso começou a me despertar interesse em estudar a situação epidemiológica do município. Os pacientes procuravam o pronto-socorro por outros motivos, por exemplo, quadro de urticária, alergia na pele, quadro de gripe, resfriado, dor de barriga. Só que, durante o atendimento, eu diagnosticava hanseníase”, afirma o médico.
As 14 perguntas do questionário foram elaboradas em parceria com o professor da USP Marco Andrey Cipriani Frade e envolviam questões como se a pessoa sentia dor nos nervos, se tinha sensação de agulhadas ou dormência.
Unida Básica de Saúde (UBS) do bairro Santa Julia, em Jardinópolis — Foto: Divulgação/ Prefeitura
Antes da distribuição, agentes de saúde, enfermeiros e demais profissionais da saúde receberam treinamento e capacitação de diagnóstico da doença.
O formulário com 14 perguntas foi aplicado em 2016 pelos agentes comunitários de saúde. Após um mês, os 3,4 mil questionários foram recolhidos e analisados. A partir dos resultados, 479 moradores foram avaliados clinicamente, dos quais 64 novos casos de hanseníase foram descobertos.
Os questionários também foram entregues no Centro de Progressão Penitenciária (CPP) de Jardinópolis. Foram avaliados 1.270 reeducandos, dos quais 34 foram diagnosticados com a doença.
“Em 2016, foram 98 casos identificados em Jardinópolis. O treinamento continuou e os médicos começaram a reconhecer e a diagnosticar nas unidades básicas de saúde pacientes com hanseníase”, diz o médico.
Os números, segundo o médico, chamam a atenção por São Paulo ser um estado considerado não endêmico da doença. A classificação é feita de acordo com o número de casos diante de uma porcentagem da população. Para ser considerado não endêmico, é preciso ter menos de um caso para cada 10 mil habitantes.
Médicos que trabalhavam no Pronto Atendimento de Jardinópolis (SP) processam empresa terceirizada por falta de pagamento — Foto: Sérgio Oliveira / EPTV
Diagnóstico tardio
De acordo com o médico dermatologista, pelo fato de o diagnóstico ser feito, na maioria das vezes, clinicamente, muitas vezes acontece tardiamente, quando a doença já está em um nível avançado.
“Se tem, oficialmente, poucos pacientes, mas se aqueles que chegam já têm sequelas da doença, você consegue inserir que está fazendo um diagnóstico muito tardio, então provavelmente tem mais casos na sociedade do que se imagina”, afirma Bernardes.
A hanseníase tem cura, se diagnosticada precocemente, e é tratada com antibióticos. Nos casos em que o paciente já apresenta sequelas, como manchas na pele, caroços e perda de força muscular, a medicação pode atenuar o quadro.
“O problema da doença é nos nervos, onde não tem uma capacidade de regeneração igual outros tecidos. Então se nós temos uma inflamação muito intensa, o tratamento vai levar à melhora do quadro, mas vai ficar com sequela da doença”, explica o médico.
Coleta de sangue para teste de hanseníase — Foto: Reprodução/Redes Sociais
Por que é importante falar
De acordo com a coordenadora da Vigilância Epidemiológica de Jardinópolis, Mona Lisa Chaguri, os pacientes diagnosticados no estudo ainda são acompanhados, além das famílias de cada um.
“Tem que fazer a busca ativa dos comunicantes, então todo mundo que mora na casa de um paciente com hanseníase, também passa por consulta, faz o exame físico”, diz.
Desde o estudo, segundo Mona Lisa, mais pacientes foram diagnosticados com a doença por meio da ajuda do questionário. Atualmente, são seis pacientes em tratamento.
Para o médico Bernardes Filho, a doença deve ser divulgada e ensinada para que o diagnóstico precoce seja possível. Ele ainda chama a atenção para o fato de ela ser pouco discutida na formação dos profissionais da saúde.
“Uma das principais políticas públicas seria voltar a falar sobre a doença, divulgar e ensinar. A partir do momento que a doença deixa de ser problema de saúde pública, como no caso da hanseníase, acompanhada com isso vem um apagão no ensino da doença, então pouco se ensina nas formações dos profissionais de saúde, pouco se divulga para a sociedade.”
Para Mona Lisa, a aplicação do questionário na cidade e a capacitação dos profissionais foi de extrema importância.
“A gente ficou muito preocupado com isso, continua falando, continua recebendo demanda espontânea na vigilância. Ficamos bem em alerta”, afirma.
Atualmente, o Ministério da Saúde dedica o mês de janeiro à prevenção e à conscientização da hanseníase.
*sob supervisão de Thaisa Figueiredo